Minha segunda vida
 



Contos

Minha segunda vida

Mariana Mesquita


Quando cortaram minhas veias, eu ainda pulsava. Estava fraco e assustado, mas pulsava. Foi um milagre eu ter sobrevivido à um acidente tão violento.
Assim que os médicos constataram que a morte de Marlene era cerebral, começaram a doar tudo que nela ainda funcionava. A intenção era boa, mas o quadro era de terror: Marlene deitada numa maca, morta, com o tórax aberto e o osso esterno cerrado. O cirurgião cortou nossas veias e artérias e me arrancou de seu peito. Fui colocado primeiro em uma pequena bacia metálica e em seguida na caixa térmica que viajaria quilômetros até o Instituto do Coração onde outra mulher já me aguardava ansiosa e de peito aberto. Eu ainda pulsava.

Fui costurado em Berenice quando já não tinha mais forças para bater. Estava assustado, fraco e fora de compasso. Até que algumas seringas de sangue novo, injetado nas minhas artérias coronárias, me deu animo. Resolvi ser prático e comecei de pronto a distribuição da substância por todo aquele desconhecido organismo. Restava saber se haveria rejeição das partes envolvidas: eu e o corpo de Berenice. Se eu seria aceito, eu não sabia, o fato é que eu sentia saudades de Marlene. Como não sentir? Nasci, cresci e vivi cinquenta anos naquele peito. Foi por Marlene que eu bati esse tempo todo. Recordo cada vez que bati mais forte empolgado com suas conquistas como andar, falar, beijar, o primeiro emprego... E a maior de todas: Antônio. Meu Deus! Como bati forte por esse homem! Lembro, como se tivesse acontecido há meia hora, a primeira vez que Marlene viu Antônio. Ele recitava poemas na faculdade de Letras. Marlene ficou paralisada e eu disparei. Parecia que os versos e palavras saiam de seu coração diretamente para mim. Eu estava tão acelerado que quase saí pela boca de Marlene. Não havia dúvidas, ele era o amor da nossa vida.

Eu estava confuso em um corpo que nunca me pertenceu. Talvez a anestesia geral tenha me provocado devaneios. Eu me sentia Marlene no corpo de Berenice. Novo cérebro, novas ordens, novas sensações. Tudo muito estranho. Como eu poderia, de um dia para o outro, me desapegar da nossa vida, de Antônio, dos nossos familiares e amigos para reviver ali novas paixões, angústias e sensações que nem imagino quais sejam? Sinceramente, não sei se terei forças. Eu batia normal, fazendo meu trabalho, mas não sabia até quando... Adormeci.

Acordei com o ouvido de alguém no peito de Berenice tentando me ouvir. Berenice ainda dormia dopada. Era Beto. Fiquei curioso com aquela comunicação direta e bati mais alto. Ele percebeu e sorriu. Em seguida, beijou nossa cicatriz e sussurrou: “tudo que mais quero é estar no seu novo coração.” Eu sempre fui fraco com declarações de amor e, confesso, me apaixonei instantaneamente. A força do amor que nasceu em mim foi mais forte do que qualquer sangue novo. Passei a bater no ritmo dos apaixonados. Tão forte que Berenice acordou, abriu os olhos, viu Beto ao seu lado, sorriu e disse baixinho o que eu gritava lá dentro: “Te amo”. Foi assim que esqueci Marlene, esqueci Antônio... E daquele momento em diante só pensaria em Beto.

Berenice teve alta. O transplante foi um sucesso.

***

Mariana Mesquita é roteirista da TV Globo, desde 1995, escreveu os programas: Sítio do Pica-Pau Amarelo, Caça Talentos, O Pequeno Alquimista. E as séries: A Grande Família, O Rebu, Justiça (indicado ao Emmy internacional 2017/ Prêmio de melhor roteiro ABRA Associação de roteiristas 2017) e Onde Nascem os Fortes (Prêmio dramaturgia APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte de 2018). Publicou, pela editora globo, o Dicionário da Turma do Sítio e tem um conto no livro Dez Contos de Terror, da editora mar de histórias.

 

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